Para lá da guerra na Ucrânia — O duro golpe da OPEP a Biden. Por M.K. Bhadrakumar

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

O duro golpe da OPEP a Biden

  Por M.K. Bhadrakumar

Publicado por em 11/10/2022 (ver aqui)

Publicado originalmente por  em 10/10/2022 (ver aqui)

 

O presidente Joe Biden e o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman bin Abdulaziz chocam os punhos no Palácio Al-Salam en Jeddah, em 15 de Julho. (Agência de Imprensa Saudita, Wikimedia Commons, CC BY 4.0)

 

M.K. Bhadrakumar diz que a decisão da OPEP+ poderia mudar o quadro de segurança na Ásia Ocidental mais do que tudo desde a Revolução Iraniana de 1979.

 

A administração Biden está a estabelecer rapidamente uma narrativa de que a recente decisão da OPEP de reduzir a produção de petróleo em 2 milhões de toneladas é um “alinhamento” geopolítico da Arábia Saudita e da Rússia.

Aproveita a russofobia no governo de Washington e desvia a atenção da humilhante derrota da diplomacia pessoal do Presidente Joe Biden com a Arábia Saudita. Mas também não é isenta de fundamento.

A política externa tinha a fama de ser o forte de Biden, mas está a revelar-se o seu inimigo. Um fim ignominioso não é improvável; tal como com o ex-Presidente dos EUA Jimmy Carter, a Ásia Ocidental pode tornar-se o cemitério da sua reputação cuidadosamente cultivada.

A magnitude do que se está a desenrolar é simplesmente espantosa. Biden percebe tardiamente que as conquistas territoriais na Ucrânia não são a verdadeira história, mas sim a guerra económica e, dentro dela, a guerra energética que se tem vindo a incubar ao longo dos últimos oito meses após as sanções ocidentais à Rússia.

O paradoxo é que, mesmo que o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky ganhasse a guerra, Biden ainda teria perdido a guerra, a menos que ganhasse a guerra energética e continuasse a ganhar também a guerra económica.

O Presidente russo Vladimir Putin visualizou tal resultado já em 2016, quando, à margem da cimeira do G20 em Hangzhou, a ideia tentadora da OPEP+ cristalizou-se entre ele e o então Vice-Príncipe Herdeiro Saudita Mohammed bin Salman.

Escrevi nessa altura que um “entendimento entre a Rússia e a OPEP detém o potencial de transformar completamente os alinhamentos geopolíticos no Médio Oriente… Esta mudança não pode deixar de afectar a reciclagem petrodólar, que tem sido historicamente um pilar robusto do sistema financeiro ocidental. Também em termos estratégicos, a tentativa de Washington de ‘isolar’ a Rússia torna-se ineficaz”. Isso foi há seis anos.

Os escombros que hoje rodeiam Biden são uma grande pilha desordenada. Ele não se apercebeu de que a forma descuidada da ofensiva russa na Ucrânia era porque Putin estava concentrado na guerra económica e na guerra energética, cujo resultado determinará o futuro da hegemonia global dos EUA, que tem repousado sobre o dólar como moeda de reserva.

No início da década de 1970, a Arábia Saudita concordou que o preço do petróleo deveria ser determinado em dólares e que o petróleo, a mercadoria mais comercializada no mundo, deveria ser comercializada internacionalmente em dólares, o que praticamente determinou que todos os países do planeta deveriam manter reservas em dólares para comprar petróleo.

Os EUA, evidentemente, prometeram reciprocamente que o livre acesso ao dólar seria garantido a todos os países.

 

O dólar transformado em arma

Contudo, acabou por ser uma falsa garantia na sequência da transformação desenfreada do dólar em arma e dos movimentos grotescos dos EUA para se apoderar das reservas de dólares de outros países.

Não surpreendentemente, Putin tem vindo a insistir na necessidade de criar uma moeda de reserva alternativa ao dólar, e isso encontra eco na opinião mundial.

Sede da OPEP em Viena. (Bwag, CC BY-SA 4.0, Wikimedia Commons)

 

Tudo indica que a Casa Branca, em vez de introspecção, está a considerar novas formas de punição para a Arábia Saudita e a Rússia.

Embora “castigar” a Rússia seja difícil uma vez que os EUA esgotaram todas as opções, Biden pensa provavelmente que os EUA detêm a Arábia Saudita pelas suas veias jugulares: o serem o fornecedor de armamento e guardião de enormes reservas e investimentos sauditas e o mentor das elites sauditas.

Brian Deese, o director do Conselho Económico Nacional, disse aos repórteres na quinta-feira, “Quero ser claro a este respeito (corte de produção da OPEP), o presidente ordenou que tenhamos todas as opções em cima da mesa e assim continuará a ser o caso”. No início da quinta-feira, o próprio Biden disse aos repórteres que a Casa Branca está “à procura de alternativas”.

Nem Biden nem Deese nomearam explicitamente quais poderiam ser essas “alternativas”, a não ser para reiterar a sua capacidade de recorrer às reservas estratégicas de petróleo, apoiar-se nas empresas energéticas para reduzir os preços ao consumidor e trabalhar com o Congresso para considerar opções legislativas.

Este é um golpe duro sobre a política externa de Biden que enfrenta o ridículo da sua viagem à Arábia Saudita em Julho, que foi atacada tanto por democratas como por republicanos.

As elites políticas americanas sentem que a decisão da OPEP parece ser uma manobra saudita para enfraquecer Biden e os democratas antes das eleições de Novembro.

Isto poderia ter um impacto para além das relações EUA-Arábia Saudita e poderia mudar o quadro de segurança na Ásia Ocidental como nunca desde a Revolução Iraniana de 1979.

A Organização de Cooperação de Xangai (SCO) já está a aproximar-se da Ásia Ocidental, com o Irão a juntar-se a ela, sendo concedido o estatuto de parceiros de diálogo à Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Qatar, Bahrein, Kuwait e Egipto e a Turquia a pretender tornar-se membro de pleno direito.

Em termos mais gerais de desdolarização, a cimeira da SCO em Samarkand elaborou um roteiro para o aumento gradual da quota das moedas nacionais nos acordos mútuos, assinalando a seriedade da sua intenção.

Organização de Cooperação de Shangai em Samarkand, Uzbequistão 2022. (Presidente.az, CC BY 4.0, Wikimedia Commons)

 

Ora, a indústria de defesa americana vai resistir duramente a quaisquer tentativas de desmantelar os seus negócios na Arábia Saudita, e tem laços extremamente estreitos com a administração Biden.

Mas Washington pode trabalhar para algum tipo de mudança de regime em Riade. O príncipe Salman disse que “não se importa” se Biden o interpretar mal. Há pouco afecto entre eles. A questão é que isto não é um simples contratempo.

Uma revolução de cores é irrealista, mas um golpe palaciano para bloquear a sucessão de MBS é uma possibilidade.

Mas é arriscado porque uma tentativa de golpe de estado provavelmente falhará. Mesmo que tenha êxito, será que um regime sucessor terá legitimidade a nível regional e será capaz de estabelecer o controlo?

Uma situação caótica como a do Iraque pós-Saddam Hussein poderia vir a seguir-se. As consequências poderiam ser desastrosas para a estabilidade do mercado petrolífero e desestabilizadoras para a economia mundial. Poderia levar a um recrudescimento dos grupos islâmicos.

O que irrita Biden é que o seu trunfo para reduzir as elevadas receitas petrolíferas da Rússia, sem deprimir a oferta utilizando um “plafonamento do preço”, tornou-se muito mais difícil agora.

Assim, a raiva de Biden de que os sauditas “tomaram o partido” da Rússia, que agora não só beneficiará de preços de petróleo mais elevados antes de um “plafonamento do preço “, mas se a Rússia for de facto alguma vez chamada a vender petróleo com desconto, pelo menos a redução começará a um nível de preços mais elevado!

Como o jornal The Financial Times o afirmou, “É pouco provável que o reino e os seus aliados no Golfo virem as costas à Rússia. Os Estados do Golfo não se pronunciaram contra a invasão da Ucrânia, e trazer a Rússia para mais perto da OPEP tem sido um objectivo a longo prazo”.

O cerne da questão é que o que Biden fez à Rússia ao apoderar-se das reservas daquele país não pode deixar de enervar os sauditas e outros regimes do Golfo. Eles vêem o último projecto de “plafonamento do preço” contra a Rússia como estabelecendo um precedente perigoso que um dia pode levar a tentativas dos EUA de controlar os preços do petróleo e até mesmo a um ataque directo à indústria petrolífera.

Basta dizer que a Rússia não pode ser encurralada durante o próximo período de três a quatro anos, quando há uma caminhada tão à beira do precipício pela frente.

A decisão da OPEP+ está prestes a beneficiar a Rússia de múltiplas formas. Irá impulsionar as receitas petrolíferas da Rússia rumo ao Inverno, quando a procura de energia russa da Europa aumenta tipicamente – no essencial, ajudará a Rússia a manter a sua quota de mercado mesmo que a sua produção em termos absolutos caia.

Ironicamente, Moscovo não terá de reduzir um único barril de produção, uma vez que já está a produzir muito abaixo do objectivo acordado da OPEP, beneficiando ao mesmo tempo de um preço de petróleo mais elevado, que será alcançado através de cortes principalmente pelos produtores do Golfo da OPEP – suportado pela Arábia Saudita (-520.000 bpd), Iraque (-220.000 bpd), UAE (-150.000 bpd) e Kuwait (-135.000 bpd).

Não é surpreendente que as companhias petrolíferas russas beneficiem de preços mais elevados e, ao mesmo tempo, mantenham a produção estável? E é nesta altura que o banco central de Moscovo terá provavelmente recuperado mais do que os 300 mil milhões de dólares de reservas já congeladas pelos bancos centrais ocidentais no início da guerra da Ucrânia.

Na realidade, a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo envolvidos com a OPEP+ tomaram efectivamente partido pelo Kremlin, o que permite à Rússia reabastecer os seus cofres e limitar o impacto das sanções ocidentais.

As implicações são de grande alcance, desde a guerra da Ucrânia até à futura relação entre os EUA e a Arábia Saudita, e a emergente ordem mundial multipolar.

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O autor: M.K. Bhadrakumar, antigo embaixador da Índia, analista político. Durante 3 décadas a sua carreira diplomática foi dedicada a missões nos territórios da antiga União Soviética, Paquistão, Irão e Turquia. Escreve principalmente sobre a política externa indiana e os assuntos do Médio Oriente, Eurásia, Ásia Central, Ásia do Sul e Ásia-Pacífico. O blog Indian Punchline, segundo o autor, reflecte as marcas de um humanista contra o pano de fundo do “século asiático”, sublinhando isto porque vivemos em tempos difíceis, especialmente na Índia, com uma polarização tão aguda nos discursos – “Ou estás connosco ou contra nós”.

 

 

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